quarta-feira, 21 de novembro de 2007

King: obra inacabada

Uma Obra Inacabada
Paulo Ayres Matos


“Quem se importa hoje com Martin Luther King? Quem se interessa hoje por Martin Luther King?”, essa foi a questão colocada há quase duas décadas atrás pelo Don L. Davis, diretor do Instituto de Pastoral Urbano ligado à Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos, num excelente ensaio sobre a relevância do pensamento e da obra de Martin Luther King, vinte anos após a sua morte por ocasião do estabelecimento da terceira segunda-feira do mês de janeiro como feriado nacional norte-americano, em celebração do seu aniversário no dia 15 do mesmo mês. O argumento central do ensaio de Davis tem a ver com a dura constatação de que a melhor maneira de nos livrarmos do legado da vida do grande ativista social norte-americano em favor dos direitos civis da população negra tem sido a crescente veneração dele por parte da elite norte-americana, e me atreveria a dizer de todo o mundo, na mesma medida em que os princípios, valores e estratégias que nortearam sua prática revolucionária são negados no cotidiano das relações sociais. Dizia, então, dr. Davis, citando um dos biógrafos de King:

“Os mesmos congresso e presidente que aprovaram o dia do aniversário de Martin King como feriado nacional se recusaram assinar uma nova lei de direitos civis nos anos 80. ... Não seria o caso do Presidente Reagan ter se apercebido de que a melhor maneira de não se confrontar com King é venerá-lo? Honrá-lo com um feriado que se estivesse ele vivo nunca teria aceitado? ... É muito mais fácil honrar um herói morto do que reconhecer e seguir um profeta vivo! A melhor maneira de se furtar a qualquer desafio é exaltar e adorar a fonte concreta da qual se originou tal desafio.”

Quero honrar a memória e a luta de um dos maiores seres humanos que o século XX teve oportunidade de oferecer a todas as gerações – Martin Luther King Jr. Mas o que será que nos trouxe aqui? Será que nos importamos realmente com sua vida e obra? Haverá realmente algum interesse de nossa parte de nos comprometermos, pelo menos de uma vaga maneira, com os mesmos valores e princípios que fizeram dele um ardoroso lutador pela erradicação das injustiças não só em seu país, mas em outros cantos do mundo? O que será que nos motiva na realização dessa III Semana Martin Luther King?

O que me proponho apresentar nesta sessão de abertura dessa importante realização do Palas Athenas é uma reflexão sobre a trajetória de um homem que sempre teve diante de si a certeza de que sua obra era anterior a ele mesmo e que não estaria terminada quando de sua morte. No dia anterior a sua morte, em 3 de abril de 1968, na conclusão do discurso proferido aos grevistas dos serviços de água e esgoto da cidade de Memphis, no Estado de Tennessee, King, alegorizando a passagem bíblica que diz ter Moisés visto de longe, do alto da montanha, a terra prometida onde por sua morte não pode entrar, afirmou:

“O que fariam a mim alguns de nossos doentes irmãos brancos? Bem, eu não sei o que me acontecerá agora. Nós temos diante de nós duros dias. Mas isto não me importa agora. Porque eu tenho estado no alto da montanha. E eu não me importo. Como qualquer um, eu gostaria de viver uma vida longa. Longevidade é coisa boa. Mas eu não estou preocupado com ela agora. A única coisa que quero fazer é cumprir com a vontade de Deus. E Deus me tem permito chegar ao alto da montanha. E eu a tenho contemplado – a terra prometida. Talvez eu não entre nela acompanhando vocês. Mas nesta noite quero que vocês saibam que, como um povo, vamos entrar na terra prometida. E por isto estou feliz esta noite. Eu não temo nada. Nenhum homem me faz ter medo. Meus olhos viram a glória do Senhor.”

Esta profunda convicção de que a obra na qual estava engajado era muito maior do que ele mesmo, fez de Martin Luther King um símbolo para todas as pessoas que lutam pela superação de todas as formas de exclusão e descriminação. A obra de sua curta vida morreu antes de completar quarenta anos de idade, é e sempre será uma referência maior onde quer que seja mulheres e homens estejam comprometidos com a construção de uma sociedade mais justa e fraterna.

Mas quem foi este Martin Luther King? Permitam-me apresentar alguns traços que considero importantes de sua trajetória desde Atlanta, onde nasceu, até seu martírio em Memphis. King nasceu no dia 15 de janeiro de 1929. Como seu pai, tornou-se pastor batista, sendo ordenado quanto tinha somente 19 anos de idade, da época em que também se graduou em sociologia na conceituada faculdade negra Morehouse College. Foi nesta mesma época que King pela primeira vez tomou contato com a vida e obra de Mahatma Ghandi, passando desde então a estudar com seriedade seus ensinos sobre a não-violência como estratégia para radicais mudanças sociais.

Sua carreira acadêmica foi desenvolvida primeiro no Seminário Teológico Crozer, na Pennsylvania, onde se bacharelou em teologia, e posteriormente na Faculdade de Teologia da Universidade de Boston, onde recebeu o título de doutor em filosofia na área de teologia sistemática. Foi em Boston, sob a orientação do teólogo metodista Harold DeWolf, introduzido à filosofia do personalismo, uma escola filosófica norte-americana que afirma o valor fundamental de cada ser humano enquanto tal.

Convicto de que a obra na qual se engajara era maior do que ele mesmo

A formação religiosa de King se deu dentro de um lar e de uma igreja fortemente enraizadas na vibrante tradição evangélica negra norte-americana. Ao longo dos tempos, as igrejas negras, principalmente as batistas e metodistas, vieram a ser espaços de resistência e luta contra o racismo e a segregação racial nos Estados Unidos. Foram elas nutridas na aplicação do ensino bíblico à vida cotidiana sofrida da população afro-americana, tanto antes como depois de sua emancipação, tão bem expressa nos cânticos dos Negro Spirituals. Essa formação religiosa foi fundamental para o desenvolvimento não somente de sua teologia mas acima de tudo para uma forte espiritualidade manifesta de modo particular em sua prática social. King se insere numa tradição religiosa afro-americana extremamente ampla e rica em que resistência e luta pela liberdade se conjugam através da interconexão no imaginário religioso das lembranças da mãe-África com a mensagem na Bíblia do Deus do Êxodo, o libertador dos pobres escravos no Egito. Certamente cânticos como Go down, Moses, tell the Pharoh e War no more! inspiraram gerações e gerações de afro-americanos em sua luta primeiro contra a própria escravidão, e depois contra a descriminação e a segregação raciais.

E isso não foi diferente com Martin Luther King. Neste sentido, a mística e a espiritualidade de King foram sempre caracterizadas pela firme convicção de que o Deus da Bíblia, em meio às lutas de cada dia, sempre está do, no e ao lado dos pobres, dos marginalizados, dos discriminados e dos excluídos da sociedade. Outro aspecto da religiosidade afro-americana que se introjetou profundamente em King foi o estilo oratório peculiar aos pregadores negros norte-americanos. King, quer como pregador, quer como conferencista, quer como ativista social, nunca abriu mão da retórica própria das igrejas negras norte-americanas.

Por outro lado, as pesquisas mais recentes sobre o pensamento de King mostram que sua formação teológica tanto no Crozer como em Boston o levaram a aprofundar sua resistência e crescentemente oposição a qualquer forma intimista ou individualista da fé religiosa. Neste sentido, King assumiu crescentemente a agenda teológica do liberalismo norte-americano, especialmente do Evangelho Social (Social Gospel). A forte piedade e espiritualidade místicas de King, insertadas na cultura religiosa afro-americana, foram cada vez mais ao longo de sua curta existência determinadas por seu crescente e radical compromisso social na luta em favor da justiça e da paz. Os estudiosos que nas últimas duas décadas têm se dedicado ao resgate do pensamento teológico e social de King estão afirmando com mais veemência a importância de sua formação teológica e filosófica em sua prática política, de maneira particular a influência da filosofia da não-violência como ensinada e praticada por Mahatma Ghandi.

Entretanto, em que pese à importância tanto de sua formação religiosa na casa de seus pais e na igreja batista negra, como de sua formação acadêmica no Seminário Crozer e na Universidade de Boston, a verdade é que sua vida vai ter uma mudança radical com a sua designação para o pastorado da Igreja Batista da Avenida Dexter em Montgomery, Alabama, no coração racista do chamado Deep South, a terra da mais abjeta descriminação e segregação raciais. Um ano depois de sua chegada a Montgomery, King não teve como escapar ao desafio colocado pela inusitada e radical decisão de Rosa Parks, uma mulher negra de 42 anos de idade, ao recusar ceder seu lugar a um branco num dos ônibus da cidade. Rosa, recentemente falecida, por causa de seu aparente tresloucado gesto no dia 1o de dezembro de 1955, acendeu a chama de uma fogueira que logo estaria incendiando a vida de milhares e milhares de mulheres e homens negros em todo sul dos Estados Unidos, inclusive de Martin Luther King. Quatro dias depois, simultaneamente ocorreram o boycott contra as companhias de ônibus, o julgamento de Rosa Parks, e a eleição de King por unanimidade para presidente da Associação para o Progresso [de Pessoas de Cor] de Montgomery. Neste mesmo dia aconteceu a virada na vida de King. Naquele dia, King estava virando a página de sua vida de forma irreversível. A tranqüilidade dos tempos escolares, acadêmicos e ministeriais, de êxito pessoal, daria lugar a uma vida tempestuosa de grandes vitórias e terríveis derrotas. Ele e o mundo já não seriam os mesmos. Logo o doutor em teologia teria de dar lugar ao audacioso pastor-ativista. Em menos de dois meses King provou o gosto amargo e ao mesmo tempo desafiador das cadeias de uma sociedade racista. Daí em diante até o final de sua vida King nunca se envergonhou por um minuto passado em um recinto presidiário; antes pelo contrário, pois, em suas próprias palavras, se envergonhava sim da sociedade que construíra cadeias para encerrar aqueles e aquelas que lutavam em favor da justiça e da igualdade entre todas as pessoas, quer fossem elas brancas ou negras. Daí em diante King e seus familiares estiveram sempre correndo risco de morte, sendo alvo de uma série infindável de tentativas de assassinato, de atentados a bomba contra sua casa, de acusações infames contra sua integridade moral, intelectual, política e espiritual, inclusive de plágio de sua tese doutoral e de adultério, sendo que muitas dessas acusações foram forjadas pelos próprios órgãos de segurança do governo norte-americano.

É verdade que a luta em Montgomery contra a segregação nos ônibus acabou por ter êxito sendo eliminada por ato da Suprema Corte Americana qualquer discriminação; um ano depois do ato corajoso de Rosa Parks o sistema de transporte público no Estado de Alabama foi integrado. Mas a luta contra o racismo norte-americano estava somente no início. Muito mais havia por fazer, primeiro no sul dos Estados Unidos, depois no norte do país, e tempos depois além das fronteiras do seu país.

"Como qualquer um, eu gostaria de viver uma longa vida.Mas a única cosa que eu quero é cumprir com a vontade de Deus." King

As complicações no ano de 1958 não foram poucas e culminaram em setembro com o atentado que King sofreu no Harlem, em Nova Iorque. Em plena recuperação, King resolve no início do ano seguinte passar com sua esposa Coretta um mês na Índia se aprofundando nas técnicas das marchas não-violentas de Gandhi, a convite de Jawaharal Nehru, primeiro-ministro daquele país. No início de 1960, outro fato importante vai catapultar as atividades de King: sua transferência para Atlanta a fim de assumir com seu pai o co-pastorado da histórica Igreja Batista Ebenezer. Os anos seguintes vêem King cada vez mais articular politicamente a luta contra o racismo, tanto local como nacionalmente. Demonstrações sit-in, marchas, piquetes, vigílias de oração, tudo isto é motivo para prisões, julgamentos, e atentados, não só contra King, mas contra outros ativistas dos direitos civis, inclusive com o assassinato de Medgar Evers, líder do Naacp no Mississipi. Por outro lado, foram se criando as condições para maior mobilização e organização em níveis local, regional e nacional do movimento dos direitos civis de tal sorte que no verão de 1963 foi possível organizar-se a primeira grande demonstração em escala nacional que se realizou no dia 28 de agosto quando King proferiu seu célebre discurso “I have a Dream”. Nessa ocasião King e outros líderes do movimento se encontram uma vez mais com o presidente norte-americano John Kennedy. Os meses seguintes foram de dramáticos acontecimentos: em setembro quatro meninas negras são mortas num atentado à bomba a uma igreja negra na cidade de Birmingham, Alabama, e em novembro o Presidente Kennedy é assassinado. O ano de 1964 vê King envolvido em diversos protestos por todo o sul dos Estados Unidos, a morte por assassinato de dois estudantes brancos e um negro que estavam fazendo campanha para inscrição eleitoral de negros no Mississipi, a assinatura da primeira parte da Lei dos Direitos Civis, e a concessão do Prêmio Nobel da Paz a King.

No início de 1965 Malcom X, ex-líder do movimento muçulmano negro, é assassinado por antigos companheiros muçulmanos. King, apesar de suas profundas divergências ideológicas com Malcolm, devido à questão do uso estratégico da não-violência, expressa seu profundo pesar pela morte do outro líder negro norte-americano mais importante naquela década. Neste mesmo ano a cidade de Selma, no Alabama, vai se tornar o principal foco das ações do movimento dos direitos civis.

Mas é no ano de 1966 que King vai tomar a decisão que vai ter graves conseqüências para os três anos finais de sua vida: ele resolve deslocar sua ação no movimento dos direitos civis para as cidades do norte dos Estados Unidos. Isto vai lhe custar problemas praticamente insuperáveis tanto com os brancos liberais, que o apoiavam enquanto sua luta estava se dando na região sul do país, como com os setores negros do norte, que crescentemente se exasperavam com o pouco progresso de sua situação sócio-econômica num contexto de certo não-segregacionismo, mas ainda sim profundamente racista. Os distúrbios urbanos particularmente no norte do país exemplificavam em grande parte o desencanto com a estratégia não-violenta ardorosamente defendida por King. A manifestação mais veemente dessa desilusão é a proclamação do Black Power exatamente por dois dos principais líderes do Movimento Estudantil Não-Violento.

Ao alugar um apartamento no gueto negro de Chicago, King passa a viver com o cotidiano da vida dos negros numa grande metrópole do norte do país e de um grande centro do liberalismo norte-americano. É neste mesmo ano que King vai começar a se envolver no movimento contra a guerra no Vietnam. No ano seguinte, em março de 1967, no Coliseu de Chicago, durante uma grande demonstração contra a guerra, King lança um forte ataque à política militarista norte-americana não só no Vietnã, mas também em outras partes do mundo. Menos de um mês depois, King pronuncia outro discurso que veio a ser famoso – Além do Vietnam – Tempo de romper o silêncio, no qual explicita de maneira clara sua percepção da íntima conexão entre racismo, pobreza e militarismo. No restante do ano a situação social se agrava e se torna cada vez mais tensa e conflituosa, com distúrbios urbanos explodindo em distantes partes do norte do país com enorme número de feridos e mortos. Diante de tal quadro, King cada vez mais articula sua luta não-violenta contra o racismo com as lutas contra a guerra e a pobreza, explicitando cada vez mais com maior clareza a natureza estrutural-econômica de suas causas.

Em fevereiro de 1968 é deflagrada a greve dos trabalhadores dos serviços de água e esgoto de Memphis, no Estado do Tennessee. King resolve apoiar o movimento e durante uma marcha de protesto, a violência irrompe e deixa o saldo de um morto e cerca de cinqüenta feridos. No dia 3 de abril, King profere diante da assembléia dos grevistas o seu discurso “Eu estive no alto da montanha”. No dia seguinte King é assassinado.

Permitam-me, depois desta exposição da caminhada de Martin Luther King, fazer algumas observações sobre o seu legado.

O legado de King não admite a construção de nenhuma mitologia em torno de sua pessoa e obra. Como já foi dito no início, a melhor maneira de se não levar a sério a vida e a obra de King é transformá-lo em um mito que deve ser reverenciado. Certamente isso seria para ele mais do que repugnante. A verdade é, contudo, que em muitos círculos isto é o que acontece hoje com a figura de King, à semelhança do que ocorre com outras figuras tais como o próprio Ghandi e, entre nós, Dom Helder Câmara e Ernesto Che Guevara, ideologicamente tão distantes, humanamente tão próximos.

Uma das dimensões mais daninhas à figura histórica de King é sua apresentação como o líder solitário na luta pelos direitos civis. E a mídia tem sido em grande parte responsável por essa distorção histórica. Tal mito se afasta da realidade histórica da qual emergiu a maiúscula figura de King, colocando-se demasiada ênfase em suas extraordinárias qualidades como líder e não considerando devidamente os fatores conjunturais que possibilitaram e contribuíram para sua aparição e atuação em momento tão singular da luta contra o racismo nos Estados Unidos. Na verdade, a liderança nacional de King emergiu como fruto de uma rede de extraordinários líderes locais e regionais que junto às suas comunidades criavam as condições de mobilização e organização para que ações mais amplas promovidas e apoiadas pelas lideranças nacionais pudessem ser bem sucedidas.

Outra dimensão dessa distorção mítica da figura de King é a ênfase em sua capacidade oratória. Claro que King, como já foi dito, era um extraordinário pregador batista negro, que sabia usar magistralmente a retórica peculiar dos pregadores negros, que influenciados pela forma dialogal das narrativas africanas fazem com que haja durante os serviços religiosos uma espécie de dança e contra-dança entre quem prega e quem ouve o sermão, que resulta num envolvimento comunitário de alta densidade emocional. Aliás, um parêntesis, isto é o que faz a pregação pentecostal ter tanto sucesso em contextos africanos, quer na África, quer na diáspora africana em outros países como o Brasil, Cuba e os próprios Estados Unidos. Tal ênfase em sua retórica, muitas vezes parece insinuar uma certa manipulação emocional e religiosa da parte de Luther King de seus ouvintes, o que seria de fato uma grave distorção de sua mensagem, já que freqüentemente King em seus sermões e discursos ia contra a corrente conservadora teológica e política prevalecente entre brancos e negros protestantes norte-americanos. Ao lado da distorção de seus poderes oratórios, há uma certa ênfase em seu carisma como líder que carregava as massas a realizar o que lhe parecia o mais apropriado para uma certa conjuntura. Os estudos mais recentes mostram que ao contrário de manipulações carismáticas e emocionais, os ativistas sociais viam as ações lideradas por King como a expressão maior de muitos outros líderes, especialmente em nível local. Estudos recentes estão mostrando que grande parte das conquistas da luta pelos direitos civis sob a liderança de King foi resultado de um grande movimento de massa com base nas comunidades locais.

É claro que King tinha clara consciência de seus carismas, homem profundamente religioso que era. Mas ele também reconhecia que diante do racismo prevalecente na sociedade americana, carisma não seria suficiente para embasar e impulsionar a luta a que se propunha junto a muitos outros líderes. Também King sempre demonstrou profunda consciência com respeito a suas próprias limitações, inclusive com dúvidas profundas sobre os caminhos a seguir em certos momentos mais conflitivos. Uma das suas maiores angústias foi exatamente o fracasso em sua pregação da não-violência, mensagem que nunca conseguiu ganhar o apoio das grandes massas de afro-americanos, especialmente entre os mais jovens. Outra grande frustração de King foi sua incapacidade em ajudar a muitos de seus colegas pastores, negros como ele, a superarem suas ideologias e teologias conservadoras que, segundo ele, se constituíam em grande entrave para o avanço da causa dos direitos civis.

Outra grande angústia de King foi sua constatação que ao mover sua atuação para o norte dos Estados Unidos, os liberais brancos que estavam dispostos apoiá-lo enquanto ele lutava somente no sul do país, pouco a pouco foram retirando o respaldo à luta pelos direitos civis, especialmente quando passou a expressar com veemência suas opiniões contrárias à guerra no Vietnã e a vincular racismo, pobreza e militarismo, pregando mais do que reformas políticas a re-estruturação do sistema econômico-militar que produzia tanto o racismo, como a pobreza, no país e no mundo. O que de fato ele passou a defender tinha muito mais a ver com revolução do que com reforma, ainda que fosse uma revolução não-violenta!

A viúva e a filha Berenice, a mais nova dos quatro filhos

Se é verdade que sua formação religiosa e acadêmica foram importantes para a formação de sua estratégia de mudanças sociais, muito mais verdade, entretanto, é o fato que foi a própria realidade do racismo, da pobreza e do militarismo que se encarregou de mudar sua percepção da realidade sócio-política-econômica de seu país e do mundo, e, acima de tudo, de suas causas. Foi a decisão, aparentemente estapafúrdia, de Rosa Parks que jogou King no redemoinho dos direitos civis. Foi Chicago que fez com que King percebesse que as causas da pobreza eram muito mais intrincadas do que a segregação nos ônibus e escolas do sul dos Estados Unidos, e perceber que elas estavam profundamente inter-relacionadas com a pobreza dos guetos negros das grandes cidades do país. Foi o envolvimento do seu país no conflito no Vietnã que o levou a perceber o caráter internacional da exploração econômica sustentado pelo aparato capitalista-militar norte-americano. Quando se apercebeu finalmente de todas estas interconexões, o acadêmico pastor de Montgomery tornou-se perigoso para o sistema. Na medida em que seu idealismo liberal foi dando lugar a um não-violento realismo radical, o liberal The New York Times, após o discurso contra a ação do governo de seu país no Vietnã, o chamou de demagogo populista. Na medida em que King vai além de seu amor nacionalista por seu país e se firma, em nome de sua fidelidade a fé que abraça, seu compromisso internacional com os pobres, marginalizados e excluídos de todo mundo, seja no Peru, na África do Sul, ou no mundo dominado pelo comunismo soviético, King se torna uma grande ameaça, talvez mais perigosa que os militantes do Black Power. Na medida que é capaz de em seu calidoscópio perceber que pobreza, racismo e militarismo estão intrinsecamente relacionados com o poder econômico, King ultrapassa os limites liberais do permissível. Por isso, seu assassinato é seu destino inevitável. Para isso ele estava preparado. Por isso termina o seu discurso aos grevistas de Memphis, na noite anterior ao seu assassinato, dizendo:

“Como qualquer um, eu gostaria de viver uma vida longa. Longevidade é coisa boa. Mas eu não estou preocupado com ela agora. A única coisa que quero fazer é cumprir com a vontade de Deus. E Deus me tem permito chegar ao alto da montanha. E eu a tenho contemplado – a terra prometida. Talvez eu não entre nela acompanhando vocês. Mas nesta noite quero que vocês saibam que como um povo vamos entrar nessa terra prometida. E por isto estou feliz esta noite. Eu não temo nada. Nenhum homem me faz ter medo. Meus olhos viram a glória do Senhor.”

Diante dos desafios de um mundo globalizado debaixo do pensamento único e da ditadura do poderoso capitalismo financeiro internacional, a percepção de Martin Luther King Jr. da interconexão entre pobreza, racismo e militarismo e a mesma luta que ele travou contra os poderes que produzem tal mundo continuam reclamando um compromisso inabalável para todas as pessoas que acreditam que um mundo diferente é possível.


* Paulo Ayres Mattos é Professor da Faculdade de Teologia da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), São Bernardo do Campo, SP.

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