quinta-feira, 6 de novembro de 2008

WESLEY E NÓS

WESLEY E NÓS

“Não tenho medo que o povo chamado metodistas deixe de existir na Europa ou na América. Somente receio que eles existam como uma seita morta, tendo a forma de religião, mas não o poder dela; e isto certamente será o caso se não conservarem a doutrina, a disciplina e o espírito com que iniciaram a jornada”.
John Wesley

A guinada reacionária que a Igreja Metodista vem sofrendo ao largo nas últimas duas décadas por causa da forte concorrência praticada no mercado dos bens religiosos imposta pelo avanço do neo-pentecostalismo e do gospel marqueteiro, é uma tentativa desesperada de se evitar o pior: a débâcle institucional do metodismo brasileiro. Digo institucional porque programaticamente temos deixado de ser metodistas de forma gradual ao longo de nossa história de mais de duzentos e cinqüenta anos. Historicamente este não foi um problema criado por nós, pois foi importado junto com os missionários.

Na Grã-Bretanha o metodismo primitivo foi uma resposta religiosa aos primórdios da revolução industrial, ao surgimento e crescimento dos centros urbanos, à formação do proletariado. Nas colônias da América do Norte se viveu uma conjuntura completamente diferente pois a colonização redundou na formação de uma sociedade praticamente rural e agrária formada por sitiantes pequenos e independentes. Em conseqüência os metodistas norte-americanos abandonaram num curto período de tempo o ensino e a pratica da santidade de coração e vida promovida pelo movimento wesleyano no interior de uma igreja estabelecida – Church of England (Igreja da Inglaterra). Ao invés de um movimento de renovação houve a formação de uma instituição denominacional – The Methodist Episcopal Church (Igreja Metodista Episcopal). Houve também ao mesmo tempo a substituição progressiva da co-responsabilidade no crescimento gradual em santidade promovida nas classes metodistas pela introversão intimista e exacerbada das conversões instantâneas promovidas pelos “camp-meetings”, o carro-chefe dos “American Revivals” . De fato o que ocorreu foi a apostasia individualista que tomou conta não somente do metodismo mas de todo o espectro religioso norte-americano. Tal apostasia transformou numa religião introvertida a religião social tão cara a Wesley, que proclamara “O evangelho de Cristo não conhece religião, que não seja religião social; não conhece santidade, que não seja santidade social”, religião e santidade sociais que encontraram sua maior expressão nas classes metodistas do metodismo primitivo.

O metodismo que recebemos no Brasil na última quadra do século dezenove já exacerbadamente individualista foi o resultado desse processo de acomodação do metodismo à sociedade de consumo norte-americana, consolidada vitoriosamente ao longo de todo aquele século. Basta ver a forma como nos Estados Unidos a escravidão deixou de ser uma questão soteriológica inerente à espiritualidade wesleyana, nos termos intransigentes de Wesley e Cooke, passou a ser considerada uma questão política pelo metodismo oficial e majoritário americano, portanto, sujeita às barganhas e conchavos de grupos, quer fossem escravagistas ou abolicionistas. Essa foi a prova mais evidente que o metodismo de Asbury e Jesse Lee, ao contrário do de Wesley e Cooke, no dizer feliz de um estudioso do metodismo norte-americano, resolveu ser uma igreja grande ao invés de ser uma grande igreja. Por isso, desde então, o nosso metodismo ter renunciado na prática ao compromisso proposto por Wesley de “Reformar a nação, de maneira particular a igreja, e espalhar a santidade bíblica sobre a terra”.

É freqüentemente afirmado que atual crise do metodismo brasileiro tem a ver com a chamada crise de identidade do metodismo. Mas em termos de crise de identidade confessional não estamos sozinhos. Esta é uma tensão que as demais igrejas, inclusive a católica com o crescimento avassalador de sua renovação carismática, e mesmo as pentecostais clássicas, como a Assembléia de Deus, não estão sabendo responder e acabam indo a reboque das incessantes novidades do mercado de bens religiosos. Aí diante da concorrência agressiva do neopentecostalismo, querendo salvar a instituição igreja, se deixam levar pelo que mercadologicamente dá certo – se o marketing religioso funciona então é bom e certo. O resultado dessa obsessão conservadora com o fortalecimento institucional e mercadológico é sua fixação com o crescimento numérico a qualquer custo. Creio que não há forma mais hedionda de mundanização da Igreja do que esta de se render o projeto missionário da Igreja ao deus mercado, voltando-se idolatricamente as costas a JAVÉ. Isto sim é que é IDOLATRIA!

Diante do crescimento exponencial de outras igrejas, muitas lideranças metodistas são levadas a assumir discursos e práticas do chamado neopentecostalismo no intento de atingirmos semelhantes índices de crescimento numérico. A afirmação do metodismo histórico é encarada como uma ameaça ou impedimento para o crescimento da Igreja e, pior, como fator de perda de membros de nossas igrejas para igrejas cujas teologias e práticas estão próximas de posicionamentos mais conservadores ou, até mesmo, fundamentalistas. Daí o ataque ao batismo infantil, ao batismo por aspersão (com a crescente prática de rebatismo imersionista, não só de católicos mas até mesmo de metodistas ou outros evangélicos batizados na infância), à santa-ceia para as crianças, ao sacerdócio universal de todos os crentes (o laicato manipulado pela crescente clericalização do pastorado metodista), às propostas do Plano de Vida e Missão da Igreja, ao ecumenismo, à itinerância pastoral, ao pastor cura-de-almas (substituído pelo pastor animador de auditório), ao sistema episcopal, ao genuflexório e ao altar (substituídos na maioria de nossas igrejas pelo palco da sociedade de espetáculo), à hinologia do HE e à hinologia metodista dos anos 80 e 90, à Faculdade de Teologia, às Diretrizes para a Educação Metodista, às pastorais populares junto a grupos sociais empobrecidos e fragilizados, às pastorais escolares, aos grupos societários e suas Federações e Confederações, à Escola Dominical (para uma Igreja de 180.000 membros temos somente 90.000 alunos na ED!), às revistas da Escola Dominical, à Festa de Suzana Wesley, e por aí vai a coisa.... Paralelamente, tem havido em muitas de nossas igrejas crescente introdução de ensino e costumes próprios do movimento neopentecostal. Curiosamente o atual ataque hiper-conservador ao ecumenismo, ao liberalismo e à teologia da libertação não faz nada mais, nada menos, do que, mutatis mutandis, reprisar os mesmos ataques que o movimento “Esquema” no Concílio Geral de 1965 fez ao ecumenismo, ao modernismo e ao comunismo! A história, quando se repete, mais do que farsa, o faz freqüentemente em forma de tragédia...

Creio que concessões doutrinárias e práticas como essas entre os metodistas acabam por nos tornar presas fáceis de práticas como G-12 (com os seus “encontros com Deus”), Louvor, Ato e Danças Proféticas, Igreja com Propósito, e outros, pois não sabemos mais afirmar com clareza e coragem o que nos distingue do neopentecostalismo, e deixar claro por que não podemos aceitar que a agenda de tais movimentos seja adotada acriticamente por um grupo crescente de pastores e pastoras metodistas somente porque produz crescimento numérico da igreja. E digo isto não porque sou contra crescimento numérico mas porque entendo que, como já nos advertiu anos atrás o líder pentecostal argentino Juan Carlos Ortiz em seu livro O Discípulo, freqüentemente a Igreja tende a tomar crescimento numérico como resultado de crescimento espiritual quando na verdade o que está ocorrendo é inchação, que não é sinal de saúde mas de doença grave. Por outro lado, tais concessões teológicas e práticas nos levam a cair na falácia do argumento que não se deve criticar o crescimento numérico das igrejas de tais pastores e pastoras, nas diferentes regiões da Igreja Metodista no Brasil, pois é descrer do “mover de Deus” e crescimento numérico é que enseja a possibilidade de crescimento qualitativo, numa espécie de absurdo silogismo de que é quantidade que produz qualidade, numa inversão do ensino de Jesus de que é a árvore boa que produz bons frutos.

Contudo, creio que há muita gente que não compactua em nada com essa guinada reacionária de nossa igreja. Muitos, tanto entre os chamados conservadores-tradicionais e carismáticos, como entre os chamados progressistas (rótulos para mim considerados como ultrapassados já que não fazem mais sentido diante da gravidade da atual situação da igreja), estão insatisfeitos com os atuais caminhos do metodismo brasileiro. Esta insatisfação não é tanto com o que aconteceu em Aracruz, mas é muito mais com o que vem acontecendo em todos os níveis de nossa denominação, pela forma como entre nós a doutrina e a prática do metodismo histórico vêm se desfigurando ao longo das últimas décadas.

Estou cada vez convencido que para superar tal obsessão institucional e mercadológica temos de reinventar no interior da Igreja Metodista a estratégia de John Wesley de permanecer dentro e fora da igreja, elusivamente como ele o fez. Declarar adesão incondicional á igreja e ao mesmo tempo buscar ser uma comunidade espiritual de resistência intra-eclesial nos termos wesleyanos da constante tensão entre a santidade da vida e a vida de santidade. Reinterpretar para nossos tempos pós-modernos do capitalismo tardio a doutrina wesleyana da santificação não como prática religiosa introvertida, mas de crescimento em amor a Deus e ao próximo inseridos nas experiências do duro cotidiano. Santidade pessoal manifesta na santidade social, numa tensão criativa entre obras de misericórdia e obras de piedade. Santidade pessoal e social como caminho de salvação, pois “se não somos salvos pelas obras, não somos salvos sem as obras”, no dizer de Wesley, citando Santo Agostinho, “Aquele que nos fez sem nós, não nos salvará sem nós”. Santidade interior em termos das motivações mais profundas de nossa existência e santidade exterior no compromisso fiel no uso disciplinado, contínuo e constante dos meios de graça, e no exercício contínuo das obras de amor na solidariedade irrestrita com os pobres e os setores mais vulneráveis de nossa sociedade, o amor incondicional a Deus e ao próximo.

Ao afirmamos o caráter soteriológico da santidade de coração e vida, afirmamos também que a santidade que buscamos é uma santidade ética e a ética que defendemos é uma ética de santidade – santidade da vida e vida de santidade! Com este compromisso resgatamos a força da proposta do Plano de Vida e Missão em seu engajamento na luta em favor da vida e contra todas as forças que produzem a morte.

Em resumo, estou convencido de que devemos esquecer definitivamente o modelo denominacional inserido no mercado dos bens religiosos e reinventar o modelo wesleyano contra-cultura de “ecclesiola in ecclesia”. Continuarmos dentro da igreja comprometidos com sua renovação, mas sem apostarmos na “salvação” da igreja institucional, desafiando a prática eclesiástica vigente através de uma prática eclesial de forte disciplina devocional comunitária e pessoal. Assumirmos nossa própria agenda em termos de santidade de coração e vida – de intensa espiritualidade wesleyana acaboclada (nos moldes de Taizé e Iona, no espírito mas não necessariamente de sua forma). Nos colocarmos a serviço da Igreja sem aceitar participação no seu jogo político. Não nos desgastarmos nas lutas políticas pelo controle dos órgãos burocráticos da Igreja – como concílios, coordenações, comissões, conselhos, etc.. Aceitarmos, sim, participar deles sempre que ofereçam possibilidades para o exercício da lógica da santidade da vida na prática cotidiana e dinâmica das obras de misericórdia e de piedade.

Para tal penso que enfrentar pessoal e comunitariamente duas duras questões colocadas pelos irmãos Wesley aos primeiros metodistas quanto à prática das obras de misericórdia e de piedade:

(1) Como submeter o nosso exacerbado individualismo ao compromisso com a religião social expressa na vida comunitária disciplinada – reinventar a vida disciplinada em comunidade nos termos wesleyanos de co-responsabilidade na caminhada mútua [reinvenção das classes metodistas à luz da experiência das CEBs?];

(2) Como submeter nossas aspirações econômicas pequeno-burguesas ao compromisso com os pobres – reinventar, no contexto do capitalismo consumista, a ética econômica de Wesley de “ganhar tudo o que puder, poupar tudo o que puder, e dar tudo o que puder” (Sermão 50 – “O Uso do Dinheiro”).

Tal reinvenção significará a gente deixar de apostar incondicionalmente na instituição eclesiástica (pois, “deixem os mortos enterrarem os seus mortos”... “não se põe remendo novo em pano velho”... “arrependei-vos e crede no evangelho”), mas sim procurar explorar as brechas institucionais que por ventura ainda existam (“enchei as talhas”... “lançai as redes”... “tirai a pedra”... “das riquezas de origem iníqua fazei amigos...”), e buscar desenvolver práticas eclesiais e missionárias alternativas na adoração, proclamação, testemunho e serviço. A denúncia profética das atuais práticas da religião de mercado entre nós metodistas será respaldada pelo anúncio do Evangelho do Reino mediante o testemunho eclesial missionário não-eclesiástico, no engajamento em projetos missionários concretos, prioritariamente juntos aos setores mais sofridos e vulneráveis de nossa (como, por exemplo, Uma Semana para Jesus da 5ª Região Eclesiástica). Esta será nossa maneira de reinventar o mandato histórico do metodismo de “Reformar a nação, de maneira particular a igreja, e espalhar a santidade bíblica sobre a terra”. Com John Wesley missionariamente declararemos o mundo, e não a igreja, como nossa paróquia, reafirmando assim o espírito católico (ecumênico) do metodismo.

Creio que nós metodistas brasileiros, especialmente as lideranças pastorais e as lideranças leigas altamente clericalizadas, não estamos sabendo dentro de nosso contexto ter a mesma sabedoria espiritual de João Wesley, que percebendo os sinais do tempo, não aceitou ser um mero “entusiasta”, nem também um mero “deísta”, e muito menos um mero “antinominiamo” ou “quietista”. Foi assim que Wesley, com suas possibilidades e limitações, através de uma espiritualidade articulada em termos de santidade de coração e vida, levou a sério as demandas missionárias do povo de seu tempo, particularmente das empobrecidas e incultas massas urbanas na emergente sociedade industrial da Inglaterra, e pode responder aos desafios de sua época.

O avivamento metodista do século XVIII é um bom exemplo de um movimento espiritual que procurou não perder o trem da história. Meu temor é que, como a Igreja da Inglaterra nos dias de Wesley, a instituição metodista brasileira, a nossa amada Igreja Metodista, parece que não sabe mais como fazer isto. Por isso, creio que estamos diante de uma situação tão nova que exige não o tentar restaurar o passado, mais sim afirmar o nosso compromisso com o futuro que está por chegar. Tal compromisso demanda de todos nós o mesmo rigor e compromisso espiritual, intelectual e pastoral que Wesley teve em seus dias. Não se trata mais de querer imitar ou reproduzir Wesley e o seu movimento em nossa época, mas como ele ter uma efetiva espiritualidade que responda aos desafios do mundo de hoje, e, assim descobrirmos novos caminhos que nos capacitem desenvolver uma práxis teológico-pastoral que nos possibilite enfrentar com decisão e destemor a crise espiritual e teológica que vivemos em nossos dias.


“Ecclesia reformata semper reformanda est.”

SOLI DEO GLORIA!
Reflexão apresentada pelo Bispo Paulo Ayres Mattos na abertura do Primeiro Encontro de Metodistas Confessantes

Nenhum comentário: