terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Instituição e Acontecimento: (Notas sobre as tensões entre o eclesiástico e o eclesial no interior da Comunidade Cristã) - Final

Instituição e Acontecimento:
(Notas sobre as tensões entre o eclesiástico e o eclesial
 no interior da Comunidade Cristã) - Final


Zwinglio M. Dias
 

 

Do Acontecimento à Instituição


O processo de institucionalização do acontecimento fundamental - o evento cristológico em sua totalidade – foi e tende a ser sempre mediado pelos elementos culturais e ideológicos dominantes dentro da sociedade onde esse processo ocorre, pois, a fé tem necessidade de um conduto ideológico que a expresse e articule. O fato da justaposição de diferentes teologias no Novo Testamento, por exemplo, constitui manifestação objetiva disso, assim como os conflitos que desde o princípio vêm dividindo os cristãos.

Como a história nos  demonstra, o Cristianismo sempre viveu dominado por uma tensão entre uma versão institucionalizada do acontecimento crístico, muitas vezes por demais distante da koinonia experimentada pela Ecclesia do Novo Testamento,  cujo discurso sempre respondeu aos interesses dos grupos dominantes na Igreja e na sociedade, e uma versão discordante que se lhe contrapõe, portanto, “herética” em relação ao discurso oficial, defendida por grupos sem poder tanto no interior da Igreja como na sociedade. Estes sempre defenderam uma explicitação do acontecimento por parte da instituição mais próximo da realidade por eles experimentada, tanto do próprio acontecimento (desmascaramento ideológico) como da própria conjuntura histórica (exigência de análise de realidade fora de uma perspectiva de poder).

A partir do momento em que o Cristianismo passou a ser objeto de  instrumentalização por parte dos setores sociais dominantes, sendo  articulado como uma versão ideológico-religiosa legitimadora da ideologia predominante dentro da sociedade, a Igreja passou a se constituir numa das mais importantes instituições sociais por ser justamente aquela que se encarregaria de elaborar o discurso ideológico que explicitaria, em termos do universo simbólico religioso, a visão de mundo própria dos poderosos. O Acontecimento fundamental passou, então, a ser interpretado pela instituição segundo os variáveis interesses de suas funções sociais. Interesses estes impostos pelas exigências de funcionalidade do aparelho do Estado ao qual foi atraída e outros,  surgidos em conseqüência da própria dinâmica que ela, como instituição, pôs em andamento. Isto começou de modo claro e determinante na era constantiniana e caracterizou, daí por diante, a história da Igreja Cristã. O conjunto de fenômenos sócio-políticos, econômicos e culturais que a partir de então, e em forma crescente, darão origem a uma diversificação de instituições eclesiásticas (Cisma de Constantinopla, Cisma de Avinhão, Reforma, Movimentos reavivalistas dos séculos XVIII e XIX, para apenas mencionar os mais conhecidos) ocorrerão em grande medida determinados pelos problemas oriundos desta forma de mediação.

Naturalmente que as coisas, em sua concreção histórica, não foram tão simples como as temos esquematizado. Mas a forma exagerada com que estamos nos referindo a estes fatos da história procura desnudar ao máximo  este dado  fundamental que tem caracterizado a relação entre a fé e as formas ideológicas de apreensão e explicitação da realidade pelos condutos religiosos.

Com isto queremos apenas sublinhar que a Igreja enquanto instituição social tende a funcionar como todas as instituições que surgem da convivência humana. Mas, de que se  trata quando falamos de instituição?  De acordo com uma curta, mas objetiva, definição de R. Alves: “Uma instituição é um mecanismo social especializado que programa o comportamento humano, seja o pensamento, seja a ação. (Ela)... é a memória socializada da sociedade, memória prática que preserva as soluções sem, entretanto, ter consciência de suas origens. (Elas)... são, assim, respostas a problemas concretamente vividos e  se justificam na medida em que preservam  sua eficácia prática”. (7)

De acordo com esta definição se poderia dizer que a instituição transmite e impõe normas e comportamentos que, por terem resultado “funcionais” para a obtenção de determinados objetivos passam a ser considerados como os que melhor correspondem às necessidades dos indivíduos. Ou seja, a instituição programa, segundo  a natureza de seus fins, os comportamentos, as atitudes, as crenças e as ações dos indivíduos. Mas pelo fato de viver do passado cada instituição, inclusive a Igreja, tende a ser estática; ela não inova. A repetição de respostas que uma vez se mostraram eficazes e a imposição destas respostas como norma axiológica constitui seu princípio fundamental. È por isso que a instituição é incapaz de propiciar atitudes criativas, pois seu horizonte ficou no passado. Rubem Alves destaca, ainda,  que “na medida em que as instituições funcionam de forma adequada o discurso a seu respeito se caracteriza pelos seguintes elementos:

1-  Suspendemos todas as nossas dúvidas a seu respeito. Funcionalidade é interpretada como verdade. E as instituições deixam de ser entendidas como historicamente contingentes e passam a ser interpretadas como ontologicamente necessárias.

2-  O discurso sobre as instituições assume a forma de justificação ideológica das mesmas. No caso específico da Igreja, justificação teológica. A instituição é uma necessidade divina. Esta é a função de fórmulas  como “a instituição é a criação divina”, “o mistério da Igreja”, “o corpo de Cristo”, “a objetivação do Espírito” etc.

3-  A descrição das realidades institucionais, descrição ideológica, é feita com o propósito de se derivar dela o imperativo. O indicativo das instituições é o imperativo do comportamento. Em outras palavras: o comportamento deve ser adaptativo. A função do indivíduo é ajusta-se ao todo e contribuir para a sua preservação e expansão.

4-  Finalmente, o discurso se caracteriza pela proibição do dizer crítico e pela obrigatoriedade do dizer apologético”. (8)

Por estas características as instituições tendem sempre a conter as manifestações vitais da comunidade humana onde atuam, pois a vida é regida pelas leis da mudança, da transformação, da criação e da “re-criação”. A vida é movimento, busca incessante do novo, do inédito. Mas a instituição tende ao imobilismo. Assim, no momento em que novas situações e novos problemas começam a surgir e para os quais as instituições não possuem uma resposta satisfatória, surge a crise entre estas e aqueles aos quais deveria oferecer novas soluções. A partir desse momento a instituição perde sua autoridade frente a eles e, por conseguinte, o monopólio das respostas. A tensão aflora e um novo discurso começa a tomar forma buscando uma interpretação totalmente distinta do discurso elaborado pela instituição em função de situações passadas  mas que ela ainda procura impor pela força de uma autoridade criada e alimentada pela crença de sua necessidade ontológica. È por este caminho que a instituição pode chegar às formas mais ousadas de repressão dos focos “heréticos”.

No caso da Igreja, o surgimento de grupos com um discurso diferente do oficial (institucional) sempre se deu quando a instituição eclesiástica deixou de perceber as transformações da realidade e continuou insistindo num tipo de “mensagem” que perdera a pertinência por continuar referindo-se a uma realidade já superada. Este fato está muito bem exemplificado nas contendas dos primeiros cristãos e, desde então, marcará o caminho da Igreja na história. A Reforma é um exemplo característico do empenho na busca de maior correspondência entre a mensagem original e a realidade de uma determinada conjuntura histórica. O movimento profético do Antigo Testamento é como que uma manifestação paradigmática deste mesmo fato. Em todas estas situações se observa a presença de um denominador comum: a referência ao acontecimento fundamental e o esforço para que o discurso original da fé guarde sua pertinência em relação às novas experiências históricas que a instituição não percebe ou não pode perceber.

A vida da Igreja é, por isso, a história das tensões, ocultas ou abertas, entre o discurso eclesiástico (institucional, oficial, ortodoxo) e as tentativas de novos discursos oriundos de grupos eclesiais (não-institucionais, não-oficiais) para alcançar uma nova interpretação ou uma nova mediação revitalizadora do acontecimento primordial que deu origem à instituição.

A Modo de Conclusão

Em sua obra paradigmática a que já nos referimos neste texto, Brunner chama a atenção para o fato de que a Igreja, enquanto instituição, muitas vezes tem se perdido em sua busca de correspondência com a Ecclesia do Novo Testamento,  seja por atender  à exigências que contrariam o Evangelho, seja por se auto-compreender, orgulhosamente,  como a expressão fidedigna e atualizada da Ecclesia primordial,  constituindo-se, assim,  em si mesma num poderoso obstáculo à emergência da verdadeira comunidade cristã no coração da história humana. Em suas palavras: “ A Igreja é uma forma evoluída historicamente, um vaso da Ecclesia; não foi dada para ela a promessa de invencibilidade e durabilidade eterna, mas somente para a Ecclesia. Desde o Cristianismo até os primeiros tempos da era da Reforma, entendeu-se o fato que a essência da Ecclesia era, em princípio, distinguível do, e em parte oposto ao, vaso da igreja que a continha. Novas tentativas sempre tem sido feitas para dar à comunidade cristã a forma externa que melhor se ajusta a ela.  Um dos mais importantes resultados do movimento ecumênico tem sido fazer o Cristianismo consciente da multiplicidade destas formas externas, e a necessidade de sua multiforme variedade.” (9)

Frente ao que vimos até aqui, que nos descortina um vasto panorama de incompreensões, equívocos, manipulações e, também, busca sincera de entendimento do significado e papel da comunidade cristã nos tempos que atravessamos, fica o desafio para o aprofundamento da compreensão do que seja a verdadeira comunidade em Cristo. Pois será desta visão renovada que surgirão as iniciativas capazes de restaurar o equilíbrio entre a Palavra e o Espírito de modo a fazer  ressurgir a Ecclesia, a verdadeira comunidade de irmãos e irmãs, em meio a nossa história. Uma comunidade marcada pelo exercício da reciprocidade, da solidariedade, de modo a permitir a expressão real da igualdade entre todos e todas, sob o signo da liberdade e da justiça. Para tal devemos levar em conta as afirmações abaixo listadas:

1- A atuação do Espírito na história ultrapassa as fronteiras sociológicas da Igreja e se revela em todas as aspirações verdadeiramente humanas à liberdade, à justiça e à fraternidade, pois seu cometido é o Reino de Deus e não a Igreja. Esta, como um dos modos  da revelação e ação de Deus entre os humanos tem de estar sempre atenta aos “sinais dos tempos” para perceber os movimentos do Espírito e secundá-lo em seu trabalho libertador.

2- A instituição eclesiástica, que existe como resultado de uma mediação histórica,  ideologicamente condicionada, da totalidade do acontecimento cristológico, vive a tensão permanente entre as “solicitações do mundo” (por ser uma instituição social) e as exigências de fidelidade ao Espírito que a empurra pelos caminhos da história para a manifestação do Reinado de Deus entre os humanos.

3-  A permanência desta tensão é de fundamental importância para o contínuo devir da Igreja como comunidade do Senhor Ressuscitado. Somente no reconhecimento humilde e  na acolhida das chamadas proféticas (Kenosis da instituição) que continuamente a remetem ao acontecimento cristológico e a convidam a uma permanente conversão (metanoia) à ação do Espírito na história, se tonará ela serva fiel de Deus a serviço dos humanos.

4-  A preservação do espaço profético no interior da instituição é  a condição única  que possibilita e garante sua verdadeira obediência. Sua supressão revelaria não apenas a debilidade dos laços da instituição com o Acontecimento-fonte como sua total submissão “aos principados e potestades deste mundo”. Neste caso a realidade do Reino não iluminaria mais seu horizonte e o Cristo louvado em seu interior não seria mais do que um ídolo, uma criação demônica a serviço da perversão da proposta evangélica original.

_______________
(7)  Alves, R., Instituição e Comunidade, in Cadernos do ISER, Rio de Janeiro: ISER, 1975.P. 9
(8)  ibidem, pg. 10
(9) Brunner, H. E., op.cit. pg. 124
 
 

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Instituição e Acontecimento: (Notas sobre as tensões entre o eclesiástico e o eclesial no interior da Comunidade Cristã) - Parte 2

Instituição e Acontecimento:
(Notas sobre as tensões entre o eclesiástico e o eclesial
 no interior da Comunidade Cristã) - Parte 2

Zwinglio M. Dias



(b) Sob a inspiração do Espírito, a Igreja surge de uma decisão dos discípulos, motivados por uma necessidade testimonial ou urgência kerigmática.

A partir do relato do livro dos Atos dos Apóstolos, se deduz que estes não fundaram a Igreja imediatamente depois do evento pentecostal. Como bons judeus a atentos às recomendações de Jesus, trataram de conquistar seus compatriotas para o Reino, confiados em que o Ressuscitado logo retornaria para restaurar definitivamente a Israel. O fato de recompor o grupo dos doze, que ficara desfalcado com a “saída” de Judas, é sinal evidente disso. Entretanto a conversão helenista, o incidente de Cornélio, a prisão de Pedro, o martírio de Estevão e, fundamentalmente, a falta de interesse dos judeus por sua pregação os levaram a ir em pós dos gentios e a não mais esperar a Parusia do Senhor como iminente. Isto é, ao darem um sentido missionário a sua pregação eles criaram as condições para o surgimento da Igreja.

Para dar este passo, no entanto, tiveram eles de reinterpretar a mensagem escatológica de Jesus, transformando sua pregação do Reino numa doutrina da Igreja e do futuro dos humanos. Jesus mesmo passou a ser entendido com o elo entre a Igreja e o Reino. Aquela surgia assim no plano da história como o instrumento de proclamação do Reino a todas as criaturas. Os discípulos se transformaram em apóstolos, ou seja, em enviados. Como tais eles pertencem agora à Igreja e não ao Reino. Por seu lado, a eucaristia assume um lugar de preponderância na vida da comunidade que, como anunciadora do Reino já instaurado em Jesus Cristo e, portanto, como continuadora de seu serviço ao mundo se alimenta, metaforicamente,  do corpo e do sangue do Crucificado, tornando-se ela mesma corpo de Cristo para o mundo.

A realidade da Igreja emerge, assim, na história como produto da ação salvífica e transformadora do Espírito para anunciar a mensagem libertadora do Reino já inaugurado em Cristo, mas ainda não plenamente realizado para todos os humanos. Ela nasce como uma “comunidade para os outros”, uma comunidade de pessoas, ou seja,  uma união ou uma unidade de pessoas, uma comunhão, um povo, nunca uma “coisa”, uma instituição.  Sua vocação é, essencial e existencialmente, sua razão de ser. A completa realização do Reino dependerá agora da eficácia histórica de sua ação sob as orientações inéditas do Espírito.
Mas se a Igreja não irrompe entre os humanos como um acontecimento pré-pascal isto não significa que ela não tenha tido ali os germes que possibilitaram sua manifestação pós-pascal. Com efeito, a pregação do Reino por parte de Jesus, o que o levou à cruz, é parte integrante do nascimento da Igreja. Os relatos dos Atos dos Apóstolos deixam claramente estabelecidos que se a Igreja é um evento pneumatológico, uma koinonia pneumatos, ou seja, um acontecimento sacramental (mysterion) para o mundo, provocado pela ação do Espírito, o é tendo como seu centro estruturante a pessoa mesma de Jesus,  tanto em sua dimensão histórica - Jesus de Nazaré – como em sua dimensão teológica – o Cristo da fé. Em conseqüência, como muito bem expressou Hans Küng: “A Igreja tem a sua origem, não simplesmente nos discípulos, nos desígnios e na missão do Jesus pré-pascal, mas sim no conjunto do acontecimento cristológico; ou seja, em toda ação de Deus em Jesus Cristo, desde o seu nascimento, vida pública e chamamento dos discípulos, até a sua morte e ressurreição e à descida do Espírito sobre as testemunhas do Ressuscitado. Não foi apenas a palavra e o ensinamento do Jesus pré-pascal, mas sim a ação de Deus, na ressurreição do Crucificado e na plenitude dos dons do Espírito, que transformou o grupo daqueles que em comum acreditavam em Jesus ressuscitado na comunidade daqueles que – ao contrário do antigo povo de Deus descrente – reclamavam ser o  Povo de Deus escatológico”. (4)
 
A história que se desenvolve das  páginas do Novo Testamento até nossos dias nos apresenta uma Igreja que, surgindo como comunidade informal, foi se institucionalizando de maneira cada vez mais complexa, em virtude de sua progressiva adesão e sujeição às distintas realidades sócio-políticas, culturais e econômicas das sociedades humanas nas quais foi assumindo contornos sociológicos definidos. As formas de sua institucionalização foram-se diferenciando segundo às conjunturas históricas que se foram sucedendo, apanhando-a num processo dialético onde sua (in)fidelidade ao acontecimento crístico passou a ser determinada em maior ou menor grau pelos interesses da instituição social em que se foi desenvolvendo. Daí que, em seu peregrinar histórico tenha ela tanto obscurecido como revelado a Jesus Cristo aos humanos. E isto na justa medida em que se ia abrindo ou fechando-se à direção do poder do Espírito que lhe deu origem. Ou seja, na medida em que se deixou, ou não,  questionar-se pelo Acontecimento que a ocasionou. Como assinalou Brunner:  “ A Palavra de Deus está verdadeira e efetivamente na Igreja como a palavra do Espírito Santo, implicando, portanto, numa unidade do “logos” com a energia dinâmica que se encontra além de toda compreensão.” (...)  “... pois a koinonia  repousa sob a inspiração do Espírito Santo, a comunhão dos homens uns com os outros, o fato de que eles estão unidos em um organismo que inclui tanto igualdade quanto diferença, a igualdade fundamental de todos e sua subordinação mútua uns aos outros.” (...) “ É compreensível que num tempo posterior, quando este poder e unidade original não existiam mais na mesma abundância, devessem tentar encontrar um substituto para o que estava faltando, e assegurar a presença do que estava rapidamente desaparecendo. Esta tentativa de garantia e substituição assume três formas diferentes: a palavra viva de Deus está assegurada – e ao mesmo tempo substituída – pela teologia e o dogma; a comunidade está assegurada – e substituída – pela instituição; a fé, que prova sua realidade pelo amor, está assegurada –e substituída – por um credo e um código moral. (5)

2- Pelo visto até aqui torna-se evidente que não se pode fazer um discurso sobre a Igreja sem falar ao mesmo tempo do Reino de Deus. A Igreja surgiu na história por e para a proclamação desse Reino, e, desde a perspectiva do Novo Testamento não se pode conceber a Igreja sem referenciá-la integralmente ao Reino anunciado por Jesus Cristo, pois este é o que justifica a sua existência e orienta a sua presença na história. Mas, o que significa esta expressão? Que realidades o Reino descobre e articula?

A tentativa de definição formulada por L. Boff nos parece muito sugestiva. Diz ele: “Reino de Deus é a expressão que designa o senhorio absoluto de Deus sobre este mundo sinistro e oprimido por forças diabólicas. Deus vai sair de seu silêncio milenário para proclamar: Eu sou o sentido e o futuro último do mundo. Eu sou a libertação total de todo mal e a libertação absoluta para o bem. Com a expressão Reino de Deus, Jesus articula um dado radical da existência humana, seu princípio-esperança e sua dimensão utópica. E promete que já não será utopia, objeto de ansiosa expectação (Lc 3. 15) mas topia,  objeto de alegria para todo o povo (Lc 2.9). Por isso suas primeiras palavras de anúncio são: Terminou o tempo de espera. O Reino de Deus está próximo. Mudem de vida. Creiam nesta alegre notícia.”(Mc 1.14) (6)

Esta perspectiva se fundamenta na compreensão da existência de uma única história criada e permeada pela ação de Deus. Esta ação não é, então, alguma coisa de especial que se concretiza em algum momento do seu desenvolvimento. Mas, em razão de seu caráter totalizante, o Reino se apresenta em Jesus Cristo como a manifestação central da atividade sempre presente de Deus na história. Assim é que ele se apresenta em sua dupla dimensão de Reino histórico e Reino escatológico, que nada tem a ver com uma realidade que se desenvolve fora dos limites de nosso mundo histórico: ele é expressão da atividade de Deus em nossa história em função de seu projeto escatológico: a libertação do horizonte da vida dos humanos para, com isso, possibilitar-lhes a liberdade para a construção de seu próprio futuro.
A proclamação do trabalho escatológico de Jesus Cristo por parte da Igreja não consiste, portanto, no anúncio de uma salvação de almas individuais ou de uma nova interpretação religiosa do mundo e da vida, mas no empenho  de proclamação,  pelo testemunho vivo da comunidade,  da possibilidade de libertação dos humanos de todas as formas de escravidão e medo que os oprimem e os tornam menos humanos. Em Jesus Cristo, Deus assume a totalidade da condição humana e lhe imprime uma direção totalmente outra, dá-lhe um novo conteúdo que se expressa na boa notícia para os pobres, libertação  para os oprimidos, o perdão para os pecadores e a vida para os mortos (Lc 4. 18-21; Mt 11.3-5). Ou seja, a proclamação do Reino aponta para a revelação do futuro no meio do presente e nos recorda o fato de que na prática de Jesus de Nazaré, o Reino de Deus foi instaurado com toda a sua eficácia histórica.

Entretanto isto não quer dizer que, em função da atividade de Deus, a eficácia histórica dos humanos tenha sido subestimada. Jesus pregou exatamente o contrário. O Reinado está entre vocês, disse ele (Lc 11.20 e 17-21). Isto é, o Reinado acontece em e através da história que os humanos vão construindo, ainda que a supere. A contínua conversão da Igreja aos propósitos do Reino,  que se revela na busca constante do significado do acontecimento original (a koinonia christou) para a sua presente conjuntura histórica, exige dela não uma simples reforma ou modernização de suas estruturas, mas uma orientação qualitativamente nova de sua manifestação histórica, enquanto comunidade de homens e mulheres solidários e interdependentes, em função daquilo que a atividade de Deus que se desenvolve além dela mesma, está provocando entre os humanos.

A igreja, pois, não é o Reino, não se identifica com ele, mas o assinala e promove seus valores no meio da história. Daí que o viver institucional da Igreja deva ser encarado sempre como provisional e necessitado de transformação. Deve estar continuamente sob o juízo do acontecimento do qual se originou sob pena de negá-lo totalmente e, assim, perder os rastros do Espírito em meio às marchas e contra-marchas da história humana. 

________________
(4)  Küng, H. A Igreja, Lisboa: Moraes Ed., 1969. Vol.I pg. 111.
(5)  Brunner, H.E, op. cit. , pg. 59.
(6)  Boff, L., Salvação em Jesus Cristo e processo de libertação. Concilium, Petrópolis: Vozes, 1974. Nº 96, pg; 378.