quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Instituição e Acontecimento: (Notas sobre as tensões entre o eclesiástico e o eclesial no interior da Comunidade Cristã) - Parte 2

Instituição e Acontecimento:
(Notas sobre as tensões entre o eclesiástico e o eclesial
 no interior da Comunidade Cristã) - Parte 2

Zwinglio M. Dias



(b) Sob a inspiração do Espírito, a Igreja surge de uma decisão dos discípulos, motivados por uma necessidade testimonial ou urgência kerigmática.

A partir do relato do livro dos Atos dos Apóstolos, se deduz que estes não fundaram a Igreja imediatamente depois do evento pentecostal. Como bons judeus a atentos às recomendações de Jesus, trataram de conquistar seus compatriotas para o Reino, confiados em que o Ressuscitado logo retornaria para restaurar definitivamente a Israel. O fato de recompor o grupo dos doze, que ficara desfalcado com a “saída” de Judas, é sinal evidente disso. Entretanto a conversão helenista, o incidente de Cornélio, a prisão de Pedro, o martírio de Estevão e, fundamentalmente, a falta de interesse dos judeus por sua pregação os levaram a ir em pós dos gentios e a não mais esperar a Parusia do Senhor como iminente. Isto é, ao darem um sentido missionário a sua pregação eles criaram as condições para o surgimento da Igreja.

Para dar este passo, no entanto, tiveram eles de reinterpretar a mensagem escatológica de Jesus, transformando sua pregação do Reino numa doutrina da Igreja e do futuro dos humanos. Jesus mesmo passou a ser entendido com o elo entre a Igreja e o Reino. Aquela surgia assim no plano da história como o instrumento de proclamação do Reino a todas as criaturas. Os discípulos se transformaram em apóstolos, ou seja, em enviados. Como tais eles pertencem agora à Igreja e não ao Reino. Por seu lado, a eucaristia assume um lugar de preponderância na vida da comunidade que, como anunciadora do Reino já instaurado em Jesus Cristo e, portanto, como continuadora de seu serviço ao mundo se alimenta, metaforicamente,  do corpo e do sangue do Crucificado, tornando-se ela mesma corpo de Cristo para o mundo.

A realidade da Igreja emerge, assim, na história como produto da ação salvífica e transformadora do Espírito para anunciar a mensagem libertadora do Reino já inaugurado em Cristo, mas ainda não plenamente realizado para todos os humanos. Ela nasce como uma “comunidade para os outros”, uma comunidade de pessoas, ou seja,  uma união ou uma unidade de pessoas, uma comunhão, um povo, nunca uma “coisa”, uma instituição.  Sua vocação é, essencial e existencialmente, sua razão de ser. A completa realização do Reino dependerá agora da eficácia histórica de sua ação sob as orientações inéditas do Espírito.
Mas se a Igreja não irrompe entre os humanos como um acontecimento pré-pascal isto não significa que ela não tenha tido ali os germes que possibilitaram sua manifestação pós-pascal. Com efeito, a pregação do Reino por parte de Jesus, o que o levou à cruz, é parte integrante do nascimento da Igreja. Os relatos dos Atos dos Apóstolos deixam claramente estabelecidos que se a Igreja é um evento pneumatológico, uma koinonia pneumatos, ou seja, um acontecimento sacramental (mysterion) para o mundo, provocado pela ação do Espírito, o é tendo como seu centro estruturante a pessoa mesma de Jesus,  tanto em sua dimensão histórica - Jesus de Nazaré – como em sua dimensão teológica – o Cristo da fé. Em conseqüência, como muito bem expressou Hans Küng: “A Igreja tem a sua origem, não simplesmente nos discípulos, nos desígnios e na missão do Jesus pré-pascal, mas sim no conjunto do acontecimento cristológico; ou seja, em toda ação de Deus em Jesus Cristo, desde o seu nascimento, vida pública e chamamento dos discípulos, até a sua morte e ressurreição e à descida do Espírito sobre as testemunhas do Ressuscitado. Não foi apenas a palavra e o ensinamento do Jesus pré-pascal, mas sim a ação de Deus, na ressurreição do Crucificado e na plenitude dos dons do Espírito, que transformou o grupo daqueles que em comum acreditavam em Jesus ressuscitado na comunidade daqueles que – ao contrário do antigo povo de Deus descrente – reclamavam ser o  Povo de Deus escatológico”. (4)
 
A história que se desenvolve das  páginas do Novo Testamento até nossos dias nos apresenta uma Igreja que, surgindo como comunidade informal, foi se institucionalizando de maneira cada vez mais complexa, em virtude de sua progressiva adesão e sujeição às distintas realidades sócio-políticas, culturais e econômicas das sociedades humanas nas quais foi assumindo contornos sociológicos definidos. As formas de sua institucionalização foram-se diferenciando segundo às conjunturas históricas que se foram sucedendo, apanhando-a num processo dialético onde sua (in)fidelidade ao acontecimento crístico passou a ser determinada em maior ou menor grau pelos interesses da instituição social em que se foi desenvolvendo. Daí que, em seu peregrinar histórico tenha ela tanto obscurecido como revelado a Jesus Cristo aos humanos. E isto na justa medida em que se ia abrindo ou fechando-se à direção do poder do Espírito que lhe deu origem. Ou seja, na medida em que se deixou, ou não,  questionar-se pelo Acontecimento que a ocasionou. Como assinalou Brunner:  “ A Palavra de Deus está verdadeira e efetivamente na Igreja como a palavra do Espírito Santo, implicando, portanto, numa unidade do “logos” com a energia dinâmica que se encontra além de toda compreensão.” (...)  “... pois a koinonia  repousa sob a inspiração do Espírito Santo, a comunhão dos homens uns com os outros, o fato de que eles estão unidos em um organismo que inclui tanto igualdade quanto diferença, a igualdade fundamental de todos e sua subordinação mútua uns aos outros.” (...) “ É compreensível que num tempo posterior, quando este poder e unidade original não existiam mais na mesma abundância, devessem tentar encontrar um substituto para o que estava faltando, e assegurar a presença do que estava rapidamente desaparecendo. Esta tentativa de garantia e substituição assume três formas diferentes: a palavra viva de Deus está assegurada – e ao mesmo tempo substituída – pela teologia e o dogma; a comunidade está assegurada – e substituída – pela instituição; a fé, que prova sua realidade pelo amor, está assegurada –e substituída – por um credo e um código moral. (5)

2- Pelo visto até aqui torna-se evidente que não se pode fazer um discurso sobre a Igreja sem falar ao mesmo tempo do Reino de Deus. A Igreja surgiu na história por e para a proclamação desse Reino, e, desde a perspectiva do Novo Testamento não se pode conceber a Igreja sem referenciá-la integralmente ao Reino anunciado por Jesus Cristo, pois este é o que justifica a sua existência e orienta a sua presença na história. Mas, o que significa esta expressão? Que realidades o Reino descobre e articula?

A tentativa de definição formulada por L. Boff nos parece muito sugestiva. Diz ele: “Reino de Deus é a expressão que designa o senhorio absoluto de Deus sobre este mundo sinistro e oprimido por forças diabólicas. Deus vai sair de seu silêncio milenário para proclamar: Eu sou o sentido e o futuro último do mundo. Eu sou a libertação total de todo mal e a libertação absoluta para o bem. Com a expressão Reino de Deus, Jesus articula um dado radical da existência humana, seu princípio-esperança e sua dimensão utópica. E promete que já não será utopia, objeto de ansiosa expectação (Lc 3. 15) mas topia,  objeto de alegria para todo o povo (Lc 2.9). Por isso suas primeiras palavras de anúncio são: Terminou o tempo de espera. O Reino de Deus está próximo. Mudem de vida. Creiam nesta alegre notícia.”(Mc 1.14) (6)

Esta perspectiva se fundamenta na compreensão da existência de uma única história criada e permeada pela ação de Deus. Esta ação não é, então, alguma coisa de especial que se concretiza em algum momento do seu desenvolvimento. Mas, em razão de seu caráter totalizante, o Reino se apresenta em Jesus Cristo como a manifestação central da atividade sempre presente de Deus na história. Assim é que ele se apresenta em sua dupla dimensão de Reino histórico e Reino escatológico, que nada tem a ver com uma realidade que se desenvolve fora dos limites de nosso mundo histórico: ele é expressão da atividade de Deus em nossa história em função de seu projeto escatológico: a libertação do horizonte da vida dos humanos para, com isso, possibilitar-lhes a liberdade para a construção de seu próprio futuro.
A proclamação do trabalho escatológico de Jesus Cristo por parte da Igreja não consiste, portanto, no anúncio de uma salvação de almas individuais ou de uma nova interpretação religiosa do mundo e da vida, mas no empenho  de proclamação,  pelo testemunho vivo da comunidade,  da possibilidade de libertação dos humanos de todas as formas de escravidão e medo que os oprimem e os tornam menos humanos. Em Jesus Cristo, Deus assume a totalidade da condição humana e lhe imprime uma direção totalmente outra, dá-lhe um novo conteúdo que se expressa na boa notícia para os pobres, libertação  para os oprimidos, o perdão para os pecadores e a vida para os mortos (Lc 4. 18-21; Mt 11.3-5). Ou seja, a proclamação do Reino aponta para a revelação do futuro no meio do presente e nos recorda o fato de que na prática de Jesus de Nazaré, o Reino de Deus foi instaurado com toda a sua eficácia histórica.

Entretanto isto não quer dizer que, em função da atividade de Deus, a eficácia histórica dos humanos tenha sido subestimada. Jesus pregou exatamente o contrário. O Reinado está entre vocês, disse ele (Lc 11.20 e 17-21). Isto é, o Reinado acontece em e através da história que os humanos vão construindo, ainda que a supere. A contínua conversão da Igreja aos propósitos do Reino,  que se revela na busca constante do significado do acontecimento original (a koinonia christou) para a sua presente conjuntura histórica, exige dela não uma simples reforma ou modernização de suas estruturas, mas uma orientação qualitativamente nova de sua manifestação histórica, enquanto comunidade de homens e mulheres solidários e interdependentes, em função daquilo que a atividade de Deus que se desenvolve além dela mesma, está provocando entre os humanos.

A igreja, pois, não é o Reino, não se identifica com ele, mas o assinala e promove seus valores no meio da história. Daí que o viver institucional da Igreja deva ser encarado sempre como provisional e necessitado de transformação. Deve estar continuamente sob o juízo do acontecimento do qual se originou sob pena de negá-lo totalmente e, assim, perder os rastros do Espírito em meio às marchas e contra-marchas da história humana. 

________________
(4)  Küng, H. A Igreja, Lisboa: Moraes Ed., 1969. Vol.I pg. 111.
(5)  Brunner, H.E, op. cit. , pg. 59.
(6)  Boff, L., Salvação em Jesus Cristo e processo de libertação. Concilium, Petrópolis: Vozes, 1974. Nº 96, pg; 378.


 

Nenhum comentário: